Festival Cine Mulher - Tema 7

Tema: Preconceito de classe e raça

Cronograma_dos_Temas

ROTEIRO da PROGRAMAÇÃO

Apresentação:  PowerPoint Tema7

Vídeo Principal: Que horas ela volta?

Vídeo Bônus: Reflexão sobre o filme “Que Horas Ela Volta”

REGISTRO das SESSÕES

Apresentações do Tema7 a cada mês

Ficha Equipe Volante

Facilitadoras:

Eliane Vitória
Mari Almeida
Marlene Bispo

 


Textos Adicionais:

Preconceito de classe e raça

Preconceito é uma opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos[1], mas que é baseada unicamente em um sentimento hostil motivado por hábitos de julgamento ou generalizações apressadas.[2] A palavra também pode significar uma ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial.[1] O preconceito pode ocorrer para com uma pessoa ou um grupo de pessoas de determinada afiliação política, sexo, gênero, crenças, valores, classe social, idade, deficiência, religião, sexualidade, identidade de gênero, raça/etnia, linguagem/língua, nacionalidade, beleza, ocupação, educação, criminalidade, apoio a uma equipa desportiva, gênero musical ou outras características pessoais. Neste caso, refere-se a uma avaliação positiva ou negativa de outra pessoa baseada na percepção da associação de grupo dessa pessoa.[3]

Gordon Allport definiu preconceito como um «sentimento, favorável ou não, para com alguém ou algo anterior a, ou não baseada na verdadeira experiência».[4] Auestad (2015) define preconceito como caracterizado pela transferência simbólica, transferência de um conteúdo de significado carregado de valor a uma categoria formada socialmente e então a indivíduos que são considerados pertencentes a tal categoria, resistência a mudança e sobregeneralização.[5]

Discriminação é a conduta de transgredir os direitos de uma pessoa, baseando-se em raciocínio sem conhecimento adequado sobre a matéria, tornando-a injusta e infundada.[1]

Pode ocorrer em diversos contextos, porém o contexto mais comum é o social, através da discriminação social, cultural, étnica, política, religiosa, sexual ou etária, que podem, por sua vez, levar à exclusão social e muitos outros .

Discriminação e preconceito

Na esfera do direito, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966, em seu artigo 1º, conceitua discriminação como sendo:

“ Qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, económico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública. ”
Deve-se destacar que os termos "discriminação" e "preconceito" não se confundam, apesar de que a discriminação tenha, muitas vezes, sua origem no preconceito.

Ivair Augusto Alves dos Santos afirma que o preconceito não pode ser tomado como sinónimo de discriminação, pois esta é fruto daquele, ou seja, a discriminação pode ser provocada e motivada pelo o preconceito. Diz ainda que:

“ Discriminação é um conceito mais amplo e dinâmico do que o preconceito. Ambos têm agentes diversos: a discriminação pode ser provocada por indivíduos e por instituições e o preconceito, só pelo indivíduo. A discriminação possibilita que o enfoque seja do agente discriminador para o objeto da discriminação. Enquanto o preconceito é avaliado sob o ponto de vista do portador, a discriminação pode ser analisada sob a ótica do receptor. ”

No Brasil
O direito ao trabalho vem definido na Constituição Federal como um direito social, sendo proibido qualquer tipo de discriminação que tenha, por objetivo, reduzir ou limitar as oportunidades de acesso e manutenção do emprego.

A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho considera discriminação toda distinção, exclusão ou preferência que tenha, por fim, alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão. Exclui aquelas diferenças ou preferências fundadas em qualificações exigidas para um determinado emprego.

Há duas formas de discriminar: a primeira, visível, reprovável de imediato; e a segunda, indireta, que diz respeito à prática de atos aparentemente neutros, mas que produzem efeitos diversos sobre determinados grupos. As duas formas são incluídas no documentário "Viver a vida é possível?".

A discriminação pode se dar por sexo, idade, cor, ou racismo, estado civil, religião, ou por ser a pessoa, portadora de algum tipo de deficiência. Pode ocorrer ainda, simplesmente porque o empregado propôs uma ação reclamatória contra um ex-patrão ou porque participou de uma greve. Discrimina-se, ainda, por doença, orientação sexual, Identidade de gênero, aparência, e por uma série de outros motivos, que nada têm a ver com os requisitos necessários ao efetivo desempenho da função oferecida. O ato discriminatório pode estar consubstanciado, também, na exigência de certidões pessoais ou de exames médicos dos candidatos a emprego.

A legislação brasileira considera crime o ato discriminatório, como se depreende das leis 7 853/89 (pessoa portadora de deficiência), 9 029/95 (origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, idade e sexo) e 7 716/89 (raça ou cor).

O Ministério Público do Trabalho do Brasil, no desempenho de suas atribuições institucionais, tem se dedicado a reprimir toda e qualquer forma de discriminação que limite o acesso ou a manutenção de postos de trabalho. Essa importante função é exercida preventiva e repressivamente, através de procedimentos investigatórios e inquéritos civis públicos, que podem acarretar tanto a assinatura de Termos de Compromisso de Ajustamento de Conduta, em que o denunciado se compromete a não mais praticar aquele ato tido como discriminatório, como a propositura de Ações Civis. Atua também perante os Tribunais, emitindo pareceres circunstanciados, ou na qualidade de custus legis, na defesa de interesse de menores e incapazes, submetidos a discriminação.


Que horas ela volta?

Que Horas Ela Volta? – o lado que ninguém quer ver

Quando falamos de mulheres no mercado de trabalho, é comum voltarmos nossos olhos para as chamadas “mulheres poderosas” – vulgo, aquelas que conseguiram de alguma forma ultrapassar o teto de vidro* e conseguir algum sucesso no mundo dos homens. Mas essa não é a realidade da maioria da população feminina. Ainda que as mulheres tenham começado a ocupar o espaço público e o mercado de trabalho, persiste a divisão sexual do trabalho que deixa sobre as suas costas também todo o trabalho doméstico. Algumas de fato acumulam as funções, enquanto outras fazem uso do seu privilégio econômico para contratar outras mulheres (em geral, pobres) para se encarregar dessas tarefas. É por isso que nessa semana dedicada ao trabalho, nós precisamos muito falar sobre Que Horas Ela Volta?.


Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres compões 94,2% do total de trabalhadores domésticos no Brasil, e apenas 36,1% desse grupo possui carteira assinada. O mesmo estudo demonstrou que 17% das mulheres inseridas no mercado de trabalho estão empregadas nesse setor. 59,1% das mulheres trabalhadoras domésticas são negras. Caso ainda houvesse dúvida, esses dados deixam muito claro que o trabalho doméstico é uma questão feminista, uma questão de classe, e também uma questão de raça.

Em Que Horas Ela Volta?, dirigido por Anna Muylaert, nós acompanhamos a história de Val (Regina Casé), uma mulher nordestina que se mudou para São Paulo em busca de emprego, deixando para trás a filha Jéssica (Camila Márdila) ainda pequena. Em São Paulo, Val trabalha como empregada doméstica para uma família, cria Fabinho (Michel Joealsas), filho do casal para quem trabalha, e mora na casa dos empregadores. Como era muito comum e perfeitamente legal até a aprovação da Emenda Complementar nº 72, de 2013 (conhecida como “PEC das domésticas” e regulamentada em 2015 pela Lei Complementar nº 150, que finalmente garantiram às empregadas domésticas o acesso a direitos trabalhistas básicos), toda essa conjuntura significa que Val trabalhava 24 horas por dia, todos os dias da semana, em uma situação que guarda muitas similaridades com o trabalho realizado em outros tempos pelas mulheres negras escravizadas.

Que Horas Ela Volta? é um filme bom que não foi feito para ser um filme bom, foi feito para ser um filme doloroso, para jogar privilégios na cara e denunciar os preconceitos e o abismo que existe entre classes sociais no Brasil.

Ainda que Val seja em algum nível uma figura materna para Fabinho, isso não o impede de explorá-la de várias formas. Com Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), a situação é ainda mais absurda: eles nem a reconhecem como um ser humano. O casal considera a empregada como um ser tão inferior que eles sequer se dão ao trabalho de conhecer a pessoa que vive sob o seu teto há mais de dez anos. É muito evidente que os dois enxergam a sociedade em camadas, e Val é, para todos os efeitos, inferior, indigna de sentar na mesma mesa que eles, impura. Literalmente impura, se lembrarmos da cena em que Bárbara manda trocar a água da piscina porque Jéssica esteve dentro dela.

Que horas ela volta?

Os patrões se consideram uma casta tão superior que ficam verdadeiramente surpresos ao descobrir que Jéssica pretende prestar vestibular para arquitetura. Eles se incomodam com a postura da moça, que tem consciência de que não é inferior a ninguém e se recusa a agir como se fosse. É Jéssica que, quebrando os paradigmas profundamente enraizados na nossa cultura e no imaginário popular, ensina à mãe que ela é um ser humano tão válido quando qualquer outro e tem pleno direito de ocupar espaço no mundo.

Muito além da dominação econômica por si, a opressão de classe, assim como a de raça e a de sexo (opressões estruturais) se fundam sobre ideologias próprias que estão impregnadas não apenas nos sujeitos dominantes, mas também nos sujeitos dominados. Uma grande parte da dominação ocorre porque toda a sociedade está (conscientemente ou não) convicta de que é assim que as coisas são, “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”. O processo de revolução surge justamente quando os grupos dominados adquirem consciência da dominação e se colocam, assim, em posição de lutar contra. A dificuldade disso tudo vem não só de instituições e grupos opressores determinados a manter seus privilégios, como também de barreiras internas dos grupos oprimidos nascidas de toda uma vida de condicionamento e socialização limitantes, barreiras essas que se manifestam de diversas formas, das mais sutis às mais extremas.

Que Horas Ela Volta? mostra, muito além de uma imagem claríssima da opressão, um quadro lindo dessa tomada de consciência por parte da Val do próprio valor como ser humano. Se, no começo do filme, ela fica horrorizada com o comportamento da filha, a personagem vai aos poucos realizando seus próprios pequenos atos de rebeldia (entrar na piscina, por exemplo), até que finalmente se dá conta que ela é grande demais para aquele quartinho onde esteve confinada todos aqueles anos e vai embora. Levando de volta o presente que deu à Bárbara em seu aniversário, simbolizando toda a dedicação e lealdade que entregou àquela família por tantos anos.

Que horas ela volta?

Ainda que tenha ganho pouco tempo de tela, a vida de Val depois de deixar o emprego na casa dos antigos patrões é mais clara. E é muito significativo que quando Jéssica pergunta o que ela vai fazer a seguir, ela declare que não vai mais trabalhar como empregada doméstica, ela não quer mais viver a desumanização que viveu durante tantos anos. Finalmente reconhecendo sua natureza humana, ela se viu pela primeira vez na posição de escolher o próprio futuro e decidir o que fazer a seguir. Ela continua pobre, mas desenvolve a capacidade de olhar em frente, ter sonhos e desejos, projetar um futuro, e essa é a maior marca do ser humano, o que verdadeiramente nos separa dos animais.

Que Horas Ela Volta? é um filme maravilhoso, complexo e cheio de nuances. Ele se propõe, e consegue, cumprir ao mesmo tempo duas funções muito diferentes: denunciar e exaltar. Já passou da hora de mulheres como Val saírem da invisibilidade e terem sua humanidade e valor plenamente reconhecidos. Ainda temos um longo caminho a trilhar nesse sentido enquanto sociedade, mas essa obra, com toda a repercussão e discussão que gerou, pode ser considerado um pequeno passo na direção certa.

* Do inglês glass ceiling, a expressão é usada para fazer referência à barreira invisível que impede que mulheres e pessoas de outras minorias ocupem cargos elevados.