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Festival Cine Mulher - Tema 2 - Rev. 1

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Tema: Intolerância Religiosa

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Intolerância Religiosa

Intolerância religiosa[1] é um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar práticas e crenças religiosas de terceiros, ou a sua ausência. Pode-se constituir uma intolerância ideológica ou política, sendo que, ambas têm sido comuns através da história. A maioria dos grupos religiosos já passou por tal situação numa época ou outra. Floresce devido à ausência de liberdade de religião e pluralismo religioso.

Perseguição, neste contexto, pode referir-se a prisões ilegais, espancamentos, torturasexecução injustificada, negação de benefícios e de direitos e liberdades civis. Pode também implicar confisco de bens e destruição de propriedades, ou incitamento ao ódio.


Eu, Oxum (2017) – Por Juçara Naccioli

Eu, Oxum. Direção: Héloa e Martha Sales. País de Origem: Brasil, 2017.

(Desde já peço desculpas se, apesar das pesquisas sobre Candomblé, minha vivência na Umbanda se sobressair e vir a entrecruzar uma escrita entre essas duas religiosidades).

Heloá nasceu em Sergipe e possui uma trajetória artística que transita pelo teatro, dança e música. Em 2017, a sergipana e sua mãe, Martha Sales, atreveram-se no projeto Eu, Oxum, que tem a assinatura daquela no roteireção o direção. Indiscutivelmente, esse projeto mostra sua potência quando vai de encontro à realidade sociocultural que nos assombra não só pelo preconceito, mas pela crueldade a que estamos expostos devido à ignorância daqueles que não aceitam outras religiosidades a não ser aquelas que cultuam o embranquecido Deus europeu. É inegável que Eu, Oxum se mostra como um instrumento na quebra de paradigmas  que envolvem a intolerância contra as quintessenciadas religiões de matriz africana e, sem dúvidas, traz à luz do conhecimento e sabedoria reflexões  preciosas acerca da necessária e efervescente sobrevivência das nossas religiões.

Ela dançou, correu cachoeira, Oxu abraçou sua alma inteira”. A canção de Maria Ó, que faz parte da trilha sonora desse documentário, pode retratar bem o arquétipo de Maternidade da Orixá Oxum quando, entre movimentos e abraços, acalanta devolvendo alegria a sua filha(o). Ela reina sobre as águas doces dos rios e cachoeiras e é considerada a rainha da beleza, amor, riqueza, vaidade, fertilidade e todo o constitutivo do poder feminino. Com essa premissa, podemos entender toda a natureza do curta documentário Eu, Oxum, bem como o que está para além da obra, com isso, compreender a sensibilidade de todas as filhas dessa Orixá que vão contar suas histórias  acerca das vivências na mansuetude do barracão Ilê Axé Omin Mafé.

O curta inicia, como é possível ler, com a preparação de uma filha de santo (simbolizando a ritualística que se estende a todos os filhos de santo) do Ilê para o início dos “trabalhos”: descarrego com banho de ervas, velas a serem oferecidas em alguma intenção, queima de pólvora e banho de rio, entre outras ações que eu não saberia nomear. Na sequência, é feita a proteção do espaço onde irá acontecer o rito religioso.

Desde as primeiras cenas, chamou-me a atenção a persistência do plano detalhe, o qual ora  mostrava a particularidade do adornamento das mulheres, ora a defumação do espaço. Mas, o plano  abre em momentos específicos como a longa estrada que aparece logo no início do curta, mostrando-nos a viagem que iremos fazer nessa história que é negra, o rito do Xirê (roda, dança para a chamada dos Orixás do candomblé), entre outras poucas cenas que muito rapidamente aparecerão. Esse enquadramento nos faz refletir quanto à beleza na qual estamos imersos quando nos dispomos a ‘viver um’ terreiro de Umbanda ou barracão de Candomblé, um Orixá, o Axé e que, pelo cotidiano, tomou o tom de naturalidade, mas que, por menor que seja, constrói a grandiosidade de todo esse universo. Cada detalhe tem o seu significado de ser e seu porquê de existir, e, em um corpo maior, formam em parte nossos lugares sociais e a nós, filhos de  Santo, enquanto sujeitos. Isso é algo pouco compreendido por aqueles que se esquivam ou se negam quando convidados a conhecerem as religiões de matrizes africanas.

O enredo se desenvolve com a apresentação de seis mulheres: Héloa (Abian), Yasmin (Yawo), mãe Bequinha (Iyalorisá), Larissa (Yawo), Rosely (Ekedji), Lumara (Abian). Entre uma e outra apresentação das filhas de Oxum, vão sendo desvelados momentos do ritual do Xirê  que deixam infinitamente tocado quem conhece um Ilê de Axé e que intrigam aqueles que não o conhecem. Sei bem que a memória rítmica que está ancorada nos corpos negros aflora ao ‘sentir’ a força do Adjá, Rum, Rumpi, Lê , Agogô, Xequerê (permitam-me, pelo respeito, escrever o nome desses instrumentos com letras maiúsculas).

As personagens do documentário relatam, por meio de toda uma delicadeza, quando nasceram para o Candomblé, o momento da primeira irradiação, o medo da não aceitação por parte da sociedade, como superaram esse temor e, ainda, o respeito e amor à mãe de santo. Sobre a figura de Mãe Bequinha, qualquer discurso que despendêssemos em favor dela, certamente, cairia na incompletude,  tamanha a doçura que o documentário nos mostra. A mim é quase impossível que não venham, pela simplicidade como conduz o Ilê, os filhos de santo e a própria vida, lembranças de Mãe Menininha do Gantois, a mais importante figura do cenário das religiões de matrizes africanas no nosso país, imortalizada pelos trabalho no bem, na caridade e pelo carinho e respeito na Oração à Mãe Menininha de Dorival Caymme e também filha de Oxum.

Ainda sobre Mãe Menininha, e sobre o conceito que ela deixou acerca de Deus, caberia lembrarmos da escrita que está no seu memorial: Deus? O mesmo Deus da Igreja é o do Candomblé. A África conhece o nosso Deus tanto quanto nós, com nome de Olorum. A morada Dele é lá em cima e a nossa, cá em baixo.

Finalizamos essa proposição fílmica com um trecho da Oração à Mãe Menininha que diz que “a beleza do mundo, hein? Tá no Gantois. E a mão da doçura, hein? Tá no Gantois. O consolo da gente, ai. Tá no Gantois…”. Envolta em grande atrevimento e coragem, essa colaboradora que vos escreve, e que, coincidentemente, também é filha da Orixá da qual falamos esse tempo todo, finda com o medo de ser criticada pelos mais fervorosos e ousa agora dizer que toda a beleza, doçura e consolo está não só no Gantois, mas em Deus, na Oxum e em todos os Orixás, no Ilê Omin Mafé, no meu terreiro e no seu, ou em qualquer lugar onde houver o infinito desejo de paz.

Ora yê yê ô, minha mãe Oxum!

 * Texto escrito a partir da programação (mostra competitiva) da 3ª Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso, em Cuiabá (MT), ocorrida no período de 09 a 11 de novembro de 2018.

** Juçara Naccioli é graduada em Letras – Literatura (1999), especialista em Teoria e Prática da Língua Portuguesa (2005), ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atriz oriunda do grupo de teatro Pessoal do Ânima,  artecriadora, membro do Coletivo Parágrafo Cerrado, professora. Atua em momentos (im)previstos como debulhadora de sentimentos e tecelã de versos e prosas. Proprietária do caderno brochura no qual deixa florescer poemas permeados de sensibilidades do Espírito e audácias da carne: Desengasgo da alma.